:: O VALOR DO PASSO ::
“Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exatamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes.” — ALBERTO CAEIRO
Caminho por beiras-de-mar descalço,
deixando as línguas das marés
beijarem meus pés.
Despreocupado com as pegadas
que assim que imprimo sobre a terra,
as águas apagam…
Não vou para que me sigam.
Caminho de curioso, de olhos pasmos.
Que a trilha dê em nada, em abismo, em mata fechada,
não me estraga em nada a minha jornada.
Vou, não para chegar, mas para ir.
E não temo retornar sobre meus passos:
serão, na volta, passos novos,
diferentes dos da vinda.
E também o mar, o Sol, meus pés,
já não serão os mesmos:
cada instante brilha de ineditismo.
O valor do passo não está no rastro.
Está no passo.
* * * * *
Quanta poesia já nasceu de passos vagabundos!
E pesquisem quantos carteiros são poetas: não sei de nenhum.
(A não ser os que são carteiros das próprias cartas de amor.)
É que seus passos são demasiado ordeiros:
passos de carneiro, os de carteiro, e não de poeta…
Andar à toa, no esmo das internas marés, é fecundo.
Não é preciso ir a lugar algum.
O que é preciso é se estar onde se está.
Presente à presença:
prestando testemunho.
Ainda que seja mudo.
Olhos em espanto.
Melhor do que fitar horizontes
Com olhar de insaciável desejo
É saber amar cada um dos mares
Que vão sendo singrados e transpostos.
Pois talvez a felicidade não consista
Em atingir-se o hoje fora-de-alcance
Mas no alegrar-se de alma inteira
Com o ter alcançado o que hoje tem-se.
O valor do passo não está no rastro.
Está no passo.
Publicado em: 20/03/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Cacete, Eduardo!
Muito bom: mestre Caeiro estaria contente…
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Rodrigo
Comentou em 21/03/10